Psicólogos Autistas: um Retrato Falado
#3
episódio
Título: Psicólogos Autistas: um Retrato Falado
Data de publicação: 3/1/2022
Cocriação: Giovanna Nicolau e Pablo de Assis
Cidade/UF: Curitiba/PR
[vinheta]
Olga Aureliano: Olá, como vocês estão? Eu sou Olga Aureliano e se vocês ainda não sabem, eu sou surda e monocular, dentre milhares de outras coisas, e acompanho vocês na locução do podcast Retratos Defiças. No episódio 2 desta temporada, apresentamos a rádio-vivência criada por nossas conterrâneas Ticiane Simões e Lays Barros de Maceió/Alagoas, em uma experiência urbana que explorou um encontro engraçado e bem experimental com a deficiência visual: escutamos os áudios da bengala batidos no chão, os personagens da rua, o trem. Hoje, é o dia de publicarmos o episódio cocriado por Giovanna e Pablo, que são autistas e psicólogos, estudiosos da deficiência do campo da saúde. Aproveitem.
[vinheta]
[trilha ao fundo ao longo de todo o episódio]
Pablo: olá, meu nome é Pablo de Assis.
Giovanna: oi, eu sou a Giovanna Nicolau.
Pablo: e a gente tá aqui no Projeto Retratos Defiças pra contar um retrato pra vocês. Um retrato a partir da nossa perspectiva. A gente vai falar um pouco da clínica da pessoa autista, da clínica psicológica da pessoa autista e como que a pessoa autista é reduzida apenas ao diagnóstico médico, ao tratamento e eventualmente ela acaba sendo ignorada e invisibilizada, durante todo esse processo. Ou seja, quem é essa pessoa pelos olhos da Psicologia? Ou melhor, quem ela acaba não sendo pelos olhos da Psicologia? Para fazer esse caminho eu quero convidar você, ouvinte, a entender um pouco como o autismo é entendido pela clínica psicológica, entender também um pouco da ciência que tem por trás da compreensão do autismo e, por fim, entender quais são as demandas clínicas dos autistas que buscam atendimento ou acompanhamento psicológico. E para poder contar esse retrato para vocês estou eu, Pablo, sou psicólogo, sou pesquisador, sou professor universitário e também sou autista. Descobri recentemente que sou autista, na verdade é uma história que eu aceitei recentemente que era autista, já desconfiava há muito tempo atrás e parte desse processo foi descoberto na minha própria prática clínica com outras pessoas. Ajudando inclusive outras pessoas autistas, entendendo um pouco da sua realidade.
Giovanna: eu sou Giovanna, sou psicóloga, pesquisadora, professora, coordenadora de pesquisa, também sou autista. E me identifiquei autista faz alguns anos, através da minha psicoterapia.
[trilha]
Giovanna: já vou começar a comentar com vocês como que o autista é visto através da clínica psicológica, através do meu relato pessoal, que num primeiro momento você não aceita, não identifica, você nega, porque você foi ensinado a fazer isso. De você se negar, você aceitar como algo estranho ou alguns comportamentos, alguns hiperfocos, alguns instintos. Justamente por isso fica ainda mais difícil de você se identificar autista, ainda mais através de um processo de psicoterapia, que normalmente é trazido o diagnóstico médico, né? Com neurologistas, psiquiatras, enfim, a terapia dentro da idade. Então, não tinha conhecido ninguém que tinha se identificado autista, através da psicoterapia ou até parecido com o meu processo. Até conhecer o Pablo. Que na verdade eu me identifiquei autista na minha psicoterapia com ele. Então, percebi que foi um processo junto e concomitantemente, nós pudemos nos identificar e também promover esse processo de autoaceitação.
Pablo: a grande dificuldade da gente fazer esse processo, que também foi uma dificuldade minha, é porque a gente tem uma definição muito técnica do que é o autismo. Quando a gente vai tentar falar sobre isso, geralmente a palavra autismo é associada palavra a diagnóstico. E dentro da clínica, geralmente, a gente pensa num diagnóstico clínico, médico, do que que é autismo. E para poder fazer o diagnóstico a gente precisa ter alguns critérios diagnósticos. E para isso, a gente pega os manuais clássicos, né? Principalmente o DSM e o CID. Que tem, inclusive, critérios que eles tentam ser parecidos, mas eles são diferentes. São visões diferentes. E isso que começa a ter uma certa dificuldade. Ver autismo como diagnóstico para clínica psicológica é uma coisa muito confortável, né? Clínica psicológica as vezes gosta de ter diagnósticos prontos e tem toda uma ciência por trás, que é muito utilizada pela própria psiquiatria, pela neurologia e pelas clínicas médicas, mas a clínica psicológica, ela primeiro que ela não é unitária, né? E aí você não tem só um tipo de clínica, você tem várias clínicas diferentes. Algumas vão se utilizar desse diagnóstico, outras não. O que existe de mais comum é você ter um manual que vai dizer que pelo modelo, por um olhar biomédico, o autismo ele é um transtorno geral do desenvolvimento, que vai ser identificado geralmente na infância, relacionando o autismo a atrasos cognitivos ou de relacionamentos sociais, indicando dificuldades ou atrasos no campo da socialização, da linguagem, podendo estar associada ou não a dificuldades intelectuais e podendo também estar associada com sensibilidade sensorial [Giovanna concorda ao fundo]. Quando você faz o diagnóstico de autismo pra crianças você faz o diagnóstico observacional. Você observa, vê a criança interagindo, vê se ela tem essas dificuldades ou não, comparado as demais crianças, pra você poder fazer o diagnóstico. Algumas dessas dificuldades pra algumas crianças são mais evidentes, outras não. E é aí que começa os problemas da clínica. Não existe nenhum exame que você consegue identificar um marcador específico de autismo [Giovanna concorda ao fundo]. A gente mal tem modelos que conseguem explicar direito como é o funcionamento do autismo. Tem algumas pesquisas que mostram desenvolvimentos neurológicos diferentes pra crianças autistas e crianças que não são autistas, só que isso é difícil generalizar se isso aparece na pessoa autista ou não. São só algumas correlações que a gente tem encontrado.
Giovanna: uhum. Sim, como é o caso de mulheres. Pessoas do gênero feminino e pessoas que se identificam como mulheres que são ensinadas a se comportarem desde crianças, a ficarem quietas, a se comportarem literalmente de uma forma condizente com padrão social de identificação, motivação, vestimentas e etc. E ficam barradas muitas vezes na forma de expressão e com isso fica ainda mais enclausurado, fica fechado, engessado pra pessoa poder se expressar da forma como ela é, como ela gostaria. E em comparação a pessoa de gênero masculino que são tidas com uma possibilidade de expressão ainda maior, né? Entre aspas, essa liberdade de expressão. Essa liberdade só, só o termo liberdade. O problema é porque aí a gente começa a entrar ainda um pouco mais afundo nessa questão biomédica do autismo, de chamarem que autismo relacionarem a cor azul, né? Que vem de azul, que tem mais meninos do que meninas. Ainda tem uma relação que ainda falam que é uma doença, como se fosse uma possibilidade de cura, através dessa biomedicina poder reduzir o autismo. Na verdade, não é nem o nome autismo, né? Seria TEA, Transtorno Espectro Autista, que é como é chamado. Então ele também entra nessa questão, enquanto você tava falando eu pensei nisso.
Pablo: quando a gente fala do diagnóstico e a gente vai fazer essa clínica e vai perceber que as pesquisas mostram justamente esses dados, que tem mais diagnósticos em meninos do que em meninas, daí vai associar a cor azul. É justamente uma forma de você não perceber os componentes que não são biológicos dessa experiência do autismo, né? Eu também não gosto muito nem de falar, nem que é o transtorno do espectro autista, porque ser autista não é um transtorno, apesar da gente poder falar que é um espectro, mas [...]
Giovanna: sim, concordo.
Pablo: [...] a relação com o gênero é uma relação bem complicada, justamente porque existe uma socialização de gênero que já é imposta pra todas as crianças, antes mesmo delas nascerem, né? Hoje em dia ainda mais com as festas de revelação, com chá de revelação, antes mesmo da criança nascer já está imposta uma cor pra criança. E o que torna as coisas bem mais complicadas, né?
Giovanna: uhum.
Pablo: na minha história, eu sempre fui uma criança muito tímida, muito retraída. Quando eu ouvi o relato de mulheres autistas que não conseguiam receber a atenção devida nunca, porque elas nunca socializaram como autistas, mas sempre como mulheres. Sempre recatadas, sempre quietas, sempre criando máscaras sociais. Eu fui percebendo que a minha forma de socialização também foi assim, por isso que eu demorei tanto tempo pra me reconhecer.
Giovanna: a minha experiência foi bem diferente. Eu era uma criança que bagunçava bastante com outras crianças, mas eu tinha uma atitude assim, que me diziam que eram, entre aspas, muitas aspas, de liderança. Falavam que eu tinha muita raiva, que eu expressava muito isso, mas quando eu tava sozinha, por exemplo, eu era muito quieta e daí me chamavam de estranha. Nossa, mas com outras pessoas você é assim, quando você é sozinha você é desse jeito. Na verdade, identificaram outros diagnósticos, mas o TEA nunca foi considerado. Foi considerado TDAH, dislexia e outras coisas, mas nenhum deles encaixava no manual.
Pablo: e é interessante que essa socialização ela é diferente pra todas as pessoas. Como não existe um padrão básico de socialização, a gente não tem também nem como generalizar que os autistas vão se comportar assim, assim e assado. Uma coisa que a gente tem que perceber que por conta dessa variabilidade de socialização a gente tem comportamentos bem diferentes, de pessoas diferentes. A gente aprende a se comportar, o comportamento ele não vem no nosso DNA, ele não é definido pela forma do nosso cérebro. São devido a aprendizados diferentes. Eu aprendei a me socializar de um jeito diferente da Giovanna. O que vai acabar definindo o autismo, muito dentro disso, é como que nossos cérebros vão conseguir se socializar, né? Como que a gente vai conseguir se relacionar na sociedade e interagir com as outras pessoas. Entender o autismo, então, compreendendo as variações sociais é necessariamente dar voz para experiência de ser autista, pra permitir entender como que é essa experiência, né? Legitimamente pela perspectiva de quem é autista. Porque senão todas as perspectivas médicas que vão ser alcançadas vão se a partir só daquilo que o autista demonstra.
Giovanna: uhum.
Pablo: e uma coisa que a gente sempre percebe é que a maioria dos autistas aprende a mascarar e a esconder o seu próprio autismo, justamente pra se esconder dessas maneiras diferentes de ser. Então, o que a gente acaba percebendo é que ser autista implica numa percepção diferente, numa visão diferente, numa relação diferente com o mundo. A própria pessoa autista, muitas vezes não vai entender as relações socias, as deixas sociais. A própria pessoa autista vai ter dificuldade de manter um ritmo de interação social típico como das pessoas não autistas, por conta desse funcionamento diferente. E é esse marcador social, desses comportamentos, que acaba marcando quem é a pessoa autista. E por isso que a gente vai também pensar, a partir daqui, que o autismo é uma deficiência. Não só um diagnóstico, uma deficiência pelo modelo biomédico, ou seja, uma lesão que provoca uma certa dificuldade, mas é uma característica que encontra barreiras sociais. E aqui é a importância da gente poder entender que existe um outro modelo diferente de compreensão do autismo, que não é o modelo biomédico, mas sim o modelo social. Os estudos de deficiência, quando vão falar sobre o modelo social de deficiência, vão dizer que “deficiência é a presença de barreira de acessibilidade” e a nossa sociedade vai apresentar um monte de barreiras pras pessoas que são autistas. Por exemplo várias barreiras de comunicação. Tem muitas pessoas autistas que não falam, que não são oralizadas, então essas pessoas já vão encontrar barreiras pra poder se comunicar. Tem barreiras, e talvez as principais e as mais invisibilizadas, são as barreiras de atitudes ou as atitudinais. São comportamentos que as pessoas tem, ao lidar com outras pessoas. Muitos autistas vão apresentar uma hipersensibilidade sensorial, sons muito fortes vão incomodar, vão provocar dor, texturas, cheiros, uma luz muito forte vai ser muito incomodo. E para muitas pessoas que não são autistas, que não tem essa hipersensibilidade, provocar esses estímulos nos seus ambientes é natural. Solta um fogo de artificio quando tá feliz, tem um barulho muito alto, que luz muito forte, usar uma grande quantidade de perfume, tudo isso é natural. Isso é um incomodo muito grande pra pessoa autista. E isso acaba oferecendo uma barreira, porque a pessoa autista não consegue se aproximar, não consegue interagir, não consegue socializar e tem essas dificuldades. Mas são barreiras ligadas as condutas das pessoas, as atitudes das pessoas. Não é um problema em ser assim, o problema é ter que enfrentar uma sociedade que impõe barreiras que pra gente é muito difícil de superar. Quando você tem uma barreira que é de uma deficiência que é mais identificável, por exemplo uma escada pra uma pessoa que é cadeirante, a gente consegue ver a dificuldade que é um cadeirante subir uma escada sozinho, sem ajuda ou sem uso de rampa ou sem uso de algum elevador. Mas quando a gente tem uma dificuldade social, de socialização, é difícil a gente perceber que aquela pessoa tem dificuldade de iniciar uma conversa, tem dificuldade de mudar de assunto muitas vezes, tem dificuldade em continuar um ritmo de conversação que para aquela pessoa não é interessante. E daí a gente vai achar que é uma frescura, a gente pode até achar que é uma doença, mas não vai achar que é de fato uma legítima dificuldade daquela pessoa, por conta da forma como aquela conversação, aquela interação social é construída. Por isso que o uso do Modelo Social pra identificar o autismo, ele acaba sendo importante, por isso que eu gosto de usar a apalavra identificação. Porque não é um diagnóstico, não é um rotulo que o médico vai dar pra mim, é a maneira como eu vou me ver nessas relações. A minha grande resistência pra me aceitar autista era isso. Eu via o quanto que os médicos que eu procurava, ninguém sabia direito como é o que eu era, ninguém sabia como me entender. Mas todos queriam dizer que era ansiedade, que era depressão, que era qualquer coisa, mas não era isso. Até que eu fui conhecer outras pessoas autistas, até que eu fui me aprofundar junto a elas e eu fui ver que eu funciono como elas, eu sou como elas. E acontece uma identificação de fato, onde eu percebo as características delas como sendo as minhas e vice e versa. Por isso eu digo que eu me identifiquei autista, por conta dessa socialização.
[trilha]
Pablo: a clínica psicológica, claro que ela é baseada em ciência. E boa parte da ciência que é construída pra falar sobre autismo, vai se basear na medicina, na biologia. E é inegável que existem questões biológicas, por mais que a gente reconheça que o autismo é uma deficiência psicossocial pelo Modelo Social existem questões biológicas, existe um nível de hereditariedade relacionada no sentido de famílias com pessoas autistas tem uma chance maior de ter outros familiares que também são autistas. Se os pais são autistas, as chances dos filhos serem autistas aumenta bastante também. Existe nesse sentido um certo componente genético. Qual componente é esse? A gente não sabe. Até mesmo porque a gente vai entender que o autismo é um espectro muito grande e muito provavelmente tem vários funcionamentos neurológicos diferentes que estão associados. Tem um modelo que ele pode ser utilizado, que é o modelo que eu gosto de usar, que é pensar o cérebro autista como um cérebro hipersensível, no sentido de: normalmente o nosso cérebro, que é um órgão composto por várias células chamadas de neurônios, recebe estímulos no meio, tem um processamento e manda mensagens pros músculos pra eles poderem se comportar. Tudo isso, todo esse funcionamento depende de um certo nível de excitação, ou seja, estímulos muito fracos não são percebidos pelos neurônios. Na verdade, eles são percebidos só que não passam a mensagem a diante, precisa ter uma certa intensidade de estimulação pra poder passar essa mensagem a frente. E isso é geral, muitas vezes a gente percebe uma coisa e aquilo se perde ou a gente não tem estimulação o suficiente pra gerar um movimento e isso é normal pro funcionamento. É preciso ter uma estimulação grande pra ter uma resposta do cérebro. O modelo que dá pra entender o autismo é que os neurônios no cérebro autista eles são mais sensíveis, ou seja, precisa de uma estimulação muito mais baixa pra poder ter uma resposta. Consequentemente, a gente vive no nosso dia, uma percepção pra poder começar as cores são mais intensas, as luzes são mais fortes, os cheiros são mais intensos. Seria comparável a uma pessoa que não é autista tá ouvindo tudo no volume mais alto ou tá vendo tudo com uma intensidade mais forte, ou tá percebendo tudo numa intensidade maior. Isso o tempo todo. É como se a gente estivesse assistindo um show de rock com uma música muito alta, mas isso o tempo todo. Isso acaba sendo pesado pra gente. Esse excesso de estimulação acaba levando também pra determinados comportamentos pra tentar compensar esse excesso de estimulação, como por exemplo, alguns processos cognitivos de filtragem de informação. Se a gente recebe muita informação a gente não sabe naturalmente como filtrar essa informação, não sabe o que que é válido e o que não é, o que tem sentido e o que não tem. Então um desses mecanismos de filtragem tem a ver com as escolhas temáticas, se a gente consegue voltar toda a nossa atenção pra um tema, ou poucos temas, a gente consegue filtrar todas essas informações que a gente recebe. Essa filtragem cognitiva é o que a gente dá o nome de hiperfoco. Ela não é uma característica só de pessoa autista, na verdade qualquer pessoa pode ter um hiperfoco, mas quanto tá relacionado ao cérebro autista tá relacionado com uma maneira de filtrar o excesso de informação que a gente recebe. Daí a gente se foca em outra coisa que aí facilita o uso do nosso cérebro, da nossa atenção, da nossa cognição, pra poder interagir com a sociedade. Uma outra forma de autorregulação por conta desse excesso de estimulação tem a ver com os comportamentos repetitivos que a gente vai chamar de stims, que vem de estimulação ou autoestimulação. Que são aqueles comportamentos de movimentar as mãos, de balançar o corpo, de mexer alguma parte, as vezes tá relacionada com o estímulo verbal. A pessoa repetir uma mesma frase que a gente vai chamar de ecolalia, que é uma forma também de autorregulação baseado nesse excesso de estimulação. Pessoas que estão muito ansiosas, por exemplo, conseguem perceber esse mesmo tipo de comportamento nas suas vidas, mas isso é normal pra uma pessoa autista justamente porque a gente tá o tempo todo com excesso de informação, com excesso de estimulação. Um caso especificamente, eu me lembro que muitos desses comportamentos eu filtrava, porque eu não via ninguém mais fazer, então eu não podia fazer. Eu sempre, como eu falei, eu sempre fui uma pessoa muito contida, justamente pra não mostrar, e eu sempre disfarçava, sempre camuflava esses meus comportamentos, até recentemente quando eu me descobri que eu me permitia fazer. Começar ver que eu balançava os meus pés ou me mexia de um jeito diferente, é o meu jeito autista de ser. Pra poder lidar, pra conseguir trabalhar melhor com isso. Também com relação aos meus hiperfocos, eu sempre tive vários deles ao longo de toda vida. Alguns duram há décadas, quando falam de ficção científica, por exemplo, eu sei que pra mim é uma coisa que me interessa, que eu consigo me concentrar, que eu consigo conversar, que eu consigo participar. Muitos amigos eu consegui assim, inclusive. Alguns deles eu desconfio que possam ser autistas, mas não sabem também, né? Porque também tem um foco muito grande, muito concentrado nisso.
Giovanna: pela minha experiência, quando eu era criança tive hiperfoco naquela banda Rebeldes, em Winx, em Polly, em Barbie. Só que era um hiperfoco tão grande, tão intenso, que era como se eu quisesse ser aquelas pessoas, como se eu quisesse fazer tudo relacionado aquelas séries, filmes, enfim, personagens. E as pessoas na época achavam “- Nossa que bonitinha, né? Gosta dessas coisas enfim, né? A menina gosta dessas coisas”. Só que eu via que era muito além disso, só que eu nem consigo explicar o que que eu achava. É, eu tive muito hiperfocos, eu troco os meus hiperfocos bem frequentemente também até hoje. Mas quando eu entro no hiperfoco, eu fico tão imersa nisso que ele é também pro meu bem estar, entre muitas aspas, controlar isso, pra que eu não fizesse só isso da minha vida também, porque seria um problema pra mim, né? Pra minha saúde e etc. Eu com o meu hiperfoco, até onde eu sei que isso vai ficar de boa pra mim, vai me satisfazer, e eu, claro, literalmente às vezes nem é mais interessante, as vezes é uma série que eu gostei tanto que termino a série em tipo um dia e acabou. E assim, as pessoas acham que isso é uma parada normal, não é um hiperfoco por exemplo, porque falam “- Ah mas eu também sou assim e então se eu for assim eu também sou autista”. E daí a gente começa a entrar nessa questão da identificação e de toda essa questão biológica de “- Ah, então todo mundo é autista, né? Todo mundo é um pouquinho autista”. E até conversando com o Pablo... estávamos repensando a frase de Simone de Beauvoir de: “Não nasce-se mulher, torna-se”, mas a gente pode fazer identificação, pegar um ponto ali pra falar do autista. Pode é... “Se nasce TEA, mas torna-se autista”. Justamente por conta dessa identificação que quando a gente trás pro campo da deficiência, olhar autismo como deficiência é uma identificação e por ser identificação, a gente olha por todo esse atributo social que abarca o autismo, né? Essa identidade autista, esse movimento de Neurodiversidade, movimento de neurodivergência.
Pablo: o termo Neurodiversidade foi cunhado no começo dos anos 2000, por uma jornalista australiana, que também é autista, chamada Judy Singer. Ela quando vai descrever, em conversas com outros autistas dentro da comunidade, ela começa a perceber que o padrão do autismo é um padrão neurológico e que a gente precisa ter uma compreensão de que diferenças neurológicas também são aceitáveis. A gente tem corpos diferentes, de tamanhos diferentes, tem gêneros diferentes, sexualidades diferentes, cor de pele, cor de cabelo, tamanho do pé diferente. Mas por que que a gente parte do pressuposto que o cérebro precisa ser sempre o mesmo pra todo mundo? Cérebros também são diferentes e isso é natural. É isso que a Judy Singer tava falando, quando ela cunhou o termo neurodiversidade. E é isso que a gente vai tomar, quando a gente fala de neuro diversidade. Não como uma característica biológica dos cérebros, mas sim como uma posição política de aceitação das diferenças neurológicas como sendo naturais. Então uma pessoa que tem um cérebro que a gente pode chamar de esquizofrênico, ou um cérebro que a gente pode chamar de autista, ou um cérebro que a gente vai dar um rotulo médico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, ou esquizotípico ou qualquer rótulo que a gente dá, sendo um cérebro que se desenvolveu desse jeito e que se comporta desse jeito, a gente vai citar que é uma variação natural. Da mesma forma que várias variações diferentes ao longo da história foram já patologizadas, sexualidades diferentes já foram doenças, até mesmo diferenças de cor de pele ou questões raciais e étnicas já foram colocadas como diferenças e diminuições biológicas, né? Por perspectivas eugenistas. A gente vai entender também que lidar com as diferenças neurológicas não levando em consideração essa posição política de aceitar as diferenças também é problemático. Então é isso que a gente quer falar quando a gente fala de neurodiversidade.
Giovanna: a gente traz a neurodiversidade como esse movimento político e neurodivergência como essa diferença neurológica. E puxando por esse lado, eu tenho uma experiência pessoal que, por eu ser professora, eu ensino seu neurodiversidade, né? Trazendo pra esse campo político. E neste grupo de neurodiversidade, só há pessoas neurodivergentes. Nesse grupo de estudos nós pudemos colocar em prática toda essa parte de identificação, porque muitas pessoas chegaram ao grupo sem entender o que tava acontecendo na vida delas, se sentindo perdidas, confusas, porque convenhamos é muito estranho, é diferente, é estressante você se identificar autista, depois de uma vida inteira escutando que você era diferente, que você era estranho, que você não deveria tá pertencendo àquele lugar. Quando você se identifica autista e você começa a perceber as outras coisas e começa a fazer sentindo muita coisa você começa a se dar conta que muitas das suas vivências foram relacionadas também a um teor de violência, justamente de sistemas sociais, educacionais, instituições; te violentaram ao longo da sua vida, te implicando que você construísse um pensamento, que você fosse ensinado e ensinada, a se olhar de uma forma “- Nossa eu preciso me tratar, eu preciso de remédio, eu preciso ir num psiquiatra, eu preciso ir num neurologista porque tem alguma coisa de errado comigo, as pessoas estão falando que eu sou estranha, então eu sou estranha assim mesmo e eu não sei o que tá acontecendo comigo”. Então nesse grupo de neurodiversidade todas as pessoas que entraram chegaram com esse discurso de “- Eu passei a minha vida inteira...”; E me perguntarem: “- o quê que eu faço agora? O que eu sou agora? Quem eu sou agora?”. Invés da gente já se definir, né? O que você é, além de você é autista, a gente pode olhar o quem você está no momento, essa transformação, essa desconstrução de toda uma vida para uma reconstrução, uma construção nova, a partir desse viés da neurodivergência. Então, até pela minha experiência pela psicoterapia, eu percebi que quando eu cheguei pro Pablo era “- Nossa cara, eu sou estranha, as pessoas me acham super estranha, eu não consigo me relacionar direito, porque elas esperam de mim que eu tenha uma performance de gênero e eu nem sabia qual era o meu gênero, nem sabia se eu me identificava como mulher e etc”. A gente começou a perceber que o primeiro passo foi identificar toda essa violência e o segundo passo foi: “- tá, e agora? Né? Giovanna no meio disso tudo”. Percebi que começou a ser desconstruído, quando a gente identificou que, quando eu me identifiquei na psicoterapia que eu sou autista, as coisas começaram a fazer mais sentido de eu ter hiperfocos, de eu não entender gírias, muitas gírias eu não entendo, eu tenho que pesquisar o significado delas; metáforas é muito difícil, ironia, o sarcasmo eu levo pro literal, porque eu não entendo, então eu acho que aquela pessoa tá falando no literal mesmo e eu ”- Ah, beleza!”. Os neurotípicos, eles esperam que nós possamos entender o que que eles estão falando, e entender até por trás disso e as entrelinhas do que eles estão querendo dizer. Só que se não deixar claro, pelo menos pra mim, eu não vou entender o que aquela pessoa tá querendo dizer. Porque eu vou pensar umas mil coisas e às vezes não é nenhuma dessas mil coisas, é uma outra questão que aquela pessoa tava querendo dizer e você não entendeu. De um respeito também a neurodivergência que as pessoas nos obrigam a nos adaptarem em seus ambientes sociais. E nesse grupo de neurodiversidade, o que tem de relatos violentos de “- nossa, eu precisei me adaptar ao meu casamento”, “- eu precisei me adaptar a faculdade, porque era muito violento e os professores me cobravam projetos e trabalhos toda semana e eu tinha que fazer mesmo eu tenho um colapso, né? Super cansada mentalmente e emocionalmente também”. Então é muito estranho pras outras pessoas quererem entender que a inclusão social, ela acontece com todas as pessoas, não é com uma pessoa só, né? Quando a gente quer adaptar uma pessoa só não é inclusão, continua uma exclusão e uma segregação também. Então, trazendo um pouco mais sobre essa questão de como eu tenho vivenciado, até dentro da Psicologia. Eu comecei a estagiar com pessoas autistas, né? Eu comecei a estagiar em clínicas, em Curitiba. Crianças autistas, né? Só que a forma como essas clínicas trabalhavam era justamente num ambiente extremamente violento, que a gente vai comentar depois sobre ABA e TEACCH, outras coisas assim. De, então, de justamente você adaptar a pessoa, você forçar ela numa caixinha de um encaixe que nem aquele quebra-cabeça, né? Como se autista fosse uma peça de quebra-cabeça, a ser encaixada em algum quadro, alguma coisa assim, e não, né? Podemos ver que por sermos espectro nós podemos ser uma onda, podemos ser um infinito, a gente pode ser várias coisas, menos algo a ser encaixado em alguma coisa. Bom, quando eu comecei a trabalhar nessas clínicas, lá foram estopins pra eu começar a perceber algumas outras questões que eu não tinha reparado em mim e que foram muito importantes pra eu poder trabalhar em si na psicoterapia. E daí eu percebi que barulhos pra mim muito altos, eu suporto, músicas e tals, porém se tem pessoas mastigando do meu lado, eu não suporto o barulho, eu não consigo, pra mim é um absurdo, é como se fosse um som tão alto dentro da minha cabeça que eu fico tão incomodada que eu preciso sair do ambiente, eu fico furiosa, eu fico muito brava. E tiveram situações, ao longo da minha vida que eu quis pedir pra pessoa parar de comer de boca aberta e falaram: “- Não, você tem que aceitar que a gente come desse jeito.”. Então, não tem nem espaço pro autista poder pedir alguma coisa que tá incomodando ele, pelo menos na minha experiência. Bom, voltando né? O que eu descobri, por exemplo, nesses estágios. Eu também tive a oportunidade de estagiar em escolas de Curitiba, com pessoas autistas também. Eram crianças autistas e, trazendo pra essa questão que foi comentada do modelo biomédico e social, nesses estágios eu percebi que as pessoas tratavam as pessoas autistas justamente por conta desse diagnóstico e excluíam elas. Então se essa criança autista tava totalmente desorganizada, ela não era incluída, olhavam pra ela estranho, excluíam ela e ela ficava nesse pensamento tipo “- tá, eu não tenho amigos, eu não consigo falar com as pessoas e eu fico muito brava por conta deu não conseguir falar com as outras pessoas, delas não me entenderem”. E o movimento que eu fiz nesses estágios foi justamente o contrário do que me pediam pra fazer que era: “- ah deixa a pessoa sozinha, exclui ela da sala, tira ela da sala até ela se acalmar, depois você volta com ela.”. E eu fiz justamente o oposto, eu ficava perto dela, eu não excluía ela e comecei a trabalhar essa inclusão com a sala dessas crianças, né? Com os outros colegas e amigos e até professores e funcionou. Então foi quando eu comecei a pesquisar sobre neurodivergência e neurodiversidade, mas também vinculados a outros temas, como feminismo, política, comunicação não violenta e educação, que hoje são os temas que eu estudo e dou aula. E começar a perceber que dentro dessas áreas maiores há muito teor capacitista, há muito teor excludente às pessoas autistas e neurodivergentes, justamente por serem temas desenvolvidos por pessoas brancas, por pessoas heteronormativas, neurotípicas e não tem um espaço ou não tem uma parte que vá trazer essa questão da neurodiversidade como movimento político, mas também como inclusão de pessoas neurodivergentes, como que isso pode ser trazido a partir do protagonismo da pessoa neurodivergente, pessoa autista, enfim.
Pablo: esse é um ponto que você traz que eu acho que é essencial pra gente poder pensar a clínica, porque quando a gente fala diagnóstico, a gente sempre fala de uma avaliação que compara uma pessoa a um critério diagnóstico, né? E a gente sabe o que são os critérios dos transtornos ou os critérios até de normalidade, que a gente pode considerar normal ou não. Mas todos esses estudos, todos eles sem exceção são feitos em cima de pessoas sem deficiência, a começar com grande área do estudo chamado Psicologia do Desenvolvimento Humano. Todos os estudo sobre psicologia do desenvolvimento humano são feitos sobre pessoas sem deficiência. Onde a gente vai ver que a criança com oito meses já começa a olhar nos olhos, a criança com um ano vai começar a falar, vai começar a se movimentar assim e assado, com dois anos já vai ter uma formação linguística x ou y. Mas se a gente pega só uma criança autista e mostra que a criança autista não vai olhar aos olhos ou que ela vai ter dificuldade pra começar a falar, né? Ou se ela vai falar e ela não vai ter uma interação verbal tão grande quanto uma criança não autista, essa identificação feita por essas diferenças é muito por: “- Olha só, o normal é fazer isso e como você não tá fazendo, então você é diferente.”. E necessariamente assim recebe o diagnóstico. Então a gente não sabe como é que é, por exemplo, o desenvolvimento de uma criança autista considerada natural, porque toda criança autista já é considerada patológica, ela já nasce doença.
Giovanna: exatamente.
Pablo: e quando a gente vai tentar encaixar isso, inclusive pra identificar adultos autistas é outra complicação, porque muitas vezes, quando criança a pessoa poderia até mostrar alguma diferença dessas, mas não ser tão gritante ao ponto de exigir uma atenção específica, né? Eu me lembro, por exemplo, que tiveram que me ensinar que quando eu conversasse com as outras pessoas, eu tinha que olhar nos olhos delas. Eu me lembro que fui ensinado a fazer isso, quando eu tinha mais ou menos uns 10 a 11 anos de idade. E aí, só que eu não me lembro de como que eu fazia antes, eu realmente não me lembro. E eu fico pensando hoje, “se me ensinaram a fazer isso, provavelmente antes eu não olhava nos olhos das pessoas”, né? Pra ter que ser ensinado a fazer isso, mas era uma característica que não chamava tanta atenção ao ponto de chamar, “- Olha o pessoal tá olhando nos olhos, então talvez ele seja uma pessoa doente.”. Simplesmente, “- Ó, vamos ensinar, vai que ele nunca aprendeu?”, né? E de fato, nunca tinha aprendido, a partir de então passei a olhar nos olhos das pessoas. No começo eu olhava muito, porque né, já que vamos olhar, então vamos olhar sempre; e depois eu comecei a aprender maneiras de desfiar o olhar de vez em quando pra fingir naturalidade, pra mim nunca foi natural. Mas quando a gente compara e usa esses critérios de comparação que são diagnósticos, eles sempre se tornam muito complexos, porque toda comparação nesse sentido leva a uma padronização e uma exclusão da diversidade. Aqui é uma coisa bem delicada porque a gente tá falando de um diagnóstico, de uma identidade, a gente tá falando de pessoas que são reconhecidas como autistas, mas se a gente leva essa característica da clínica a sério a gente vai ver que toda clínica que parte de qualquer tipo de diagnóstico ela é uma clínica que tente a exclusão e isso é uma coisa muito complicada. Porque a gente não vai aceitar o que a pessoa tá trazendo como uma coisa natural, a gente sempre vai ler através do olhar do diagnóstico.
Giovanna: até na própria graduação de Psicologia, nós somos ensinados a fazer essas terapias de conversão. Se a pessoa tá agindo diferente, você manda ela pra uma avaliação diagnóstica e justamente por isso, você daí já tem toda uma equipe multidisciplinar de psiquiatra, neurologista. Se ela tá agindo diferente, então ela não pode agir diferente, porque daí ela não pode ser tratada como inadequada socialmente, porque na verdade ela é tratada como inadequada, logo você vai querer concertar ela pra que ela se adeque socialmente da forma como a sociedade pede. Obriga, né? Não pede. Durante a minha graduação de Psicologia, eu fui ensinada a segregar, a elitizar, a excluir pessoas, porque mesmo que a gente tenha uma visão da Psicologia que “- Nossa é uma ciência que visa a subjetividade humana, que vai incluir pessoas, que vai ensinar uma diversidade e um respeito a isso.”, pelo contrário, na verdade a Psicologia ela é extremamente violenta, justamente por ela ser construída e propagada por pessoas neurotípicas de classe média, brancas, cis e etc. Né? Pessoas em posição de poder. E essas pessoas elas não aceitam pessoas que divergem disso, que estão fora dessa curva normativa. Então percebi que eu comecei a dar outros passos na direção de perceber que eram necessárias novas formas de políticas públicas, de conscientização, de outros movimentos políticos relacionados a neurodiversidade. E, na verdade, levar pra autistas que eles não são esse diagnóstico médico. Porque eu tive experiencia como clínica atendendo autistas e como clínica atendendo na clínica escola dessa universidade que eu fiz a graduação. E eu recebi alguns casos que era de pessoas neurodiversas e você vai ver que eram pessoa neurodivergentes que estavam passando por violência psicológica, emocional, moral, familiar, educacional e não tinham espaço de identificação, não tinham espaço para poderem se expressar. Na verdade, o que me passavam pra ver nesses casos era pra avaliação diagnóstica pra ver o quê que tá acontecendo com essa pessoa, o quê que tem de errado, por que que ela tá se comportando desse jeito? Então a gente começa a ver que, a própria psicologia clínica ela é violenta e também ela deixa de ser uma possibilidade, uma potencial ferramenta para a inclusão de pessoas neurodivergentes. De realmente você aceitar e respeitar e escutar as perspectivas de pessoas neurodivergentes, e permitir que elas floresçam esse protagonismo pela própria vida delas. Isso na verdade foi o que o Pablo fez comigo na minha própria psicoterapia.
Pablo: é, no caso, foi permitir que a Giovanna floresça, né? Poder permitir que ela se expresse. Eu acho que esse é o potencial que a gente tem que começar a discutir sobre a própria clínica psicológica. Antes da gente querer diagnosticar, classificar, tratar, curar, modificar a pessoa a gente tem que entender o quê que torna a pessoa quem ela é, o quê que torna ela uma pessoa única e o autismo é uma dessas características que faz parte de quem a pessoa é. Antes de eu querer transformar, modificar e retirar esse autismo da pessoa, eu preciso ter certeza que a pessoa sabe o quê que é isso, consegue se entender nessa relação com ela mesma, dela com o mundo e com as outras pessoas, sejam elas autistas ou não. E esse é um trabalho muito complicado que a gente não aprende na nossa formação como psicólogos, porque na nossa graduação a gente aprende justamente quais são as teorias e quais são as técnicas de encaixe, de ajustamento das pessoas. Mesmo naquelas práticas que se dizem mais revolucionárias, mais abertas, também existe encaixe, também existe diagnóstico, também tem uma reprodução do modelo biomédico do diagnóstico e da intervenção e do prognóstico. Pode não ser uma terapia como a ABA, que é a Applied Behavior Analysis, que na verdade é um nome que diz respeito especificamente a uma abordagem de tratamento pra pessoas autistas, que foi desenvolvida quase como uma terapia de conversão, literalmente, como uma terapia de conversão, uma forma de você tentar adaptar. E no começo eram utlizadas, literalmente, técnicas de tortura, sendo que em momento nenhum foram convidadas pessoas autistas pra poder falar. Até hoje tem muita gente, muitos autistas que falam contra essas técnicas, que falem contra essas práticas e elas são o tempo todo silenciadas, porque dizem: “- Ah não, porque você não entende a ciência por trás, porque você não entende a teoria por trás.”; ou qualquer argumento de silenciamento, de carteirada, de autoridade que usam pra poder silenciar a pessoa vítima dessas práticas. E o que mais me dói é que são práticas utilizadas com crianças que não tem como se defender. São práticas utilizadas pra diminuir a ansiedade dos pais por verem que os filhos são diferentes e eles não querem os filhos diferentes. Então o problema é muito mais de uma quebra da expectativa da paternidade e da maternidade do que de fato de uma criança que precisa ser alterada. E isso é muito triste. Como que a Psicologia, se utiliza da ciência, que se utiliza dessas práticas pra poder ser violento com essas crianças? Acaba sendo violento também com adultos, quando o adulto vai procurar um emprego, mas ele não pode ser empregado, porque afinal de contas ele é autista e essa vaga não é pra pessoas autistas, essa vaga não é pra pessoa com deficiência, mas ela tem total condição de trabalhar naquele lugar, daquele jeito, mas o fato dele já ter o diagnóstico, isso é um motivo de exclusão. E olha só que bizarro, porque é uma lei pra cota pra pessoa com deficiência que deveria servir como ferramenta de inclusão, mas ela é utilizada como ferramenta de exclusão, limitando as possibilidades de trabalho. No meu caso pra eu poder ter um trabalho eu tenho que me apresentar como uma pessoa que não é autista, faço as entrevistas, entro, pra depois eu poder falar que sou autista, porque senão eu não sou contratado. E isso é uma realidade. Onde eu dou aula, por exemplo, eu fui instruído a não falar pra ninguém que eu sou autista, porque senão, “- Como assim um professor autista?”, “como assim?”, “como lidar com o preconceito dos alunos?”, né? Então tá bom, já que vocês querem me esconder, então eu me escondo, não tem problema. Então essa é a realidade, a gente acaba sendo invisibilizado o tempo todo justamente porque a gente não aprende a lidar e a aceitar a diversidade. Pra mim é essa a grande lição que a gente pega citando tudo isso, conversando sobre isso, sabe, Giovanna? Lidar com psicologia, lidar com pessoas, lidar com psicoterapia é aprender a lidar com diversidade, só que a insegurança de lidar com o diferente é uma coisa que nós, profissionais, precisamos aprender a lidar. Eu me tornei um profissional muito melhor, quando eu comecei a aceitar que eu era autista, que eu era diferente e que não era pra eu ser igual, que não precisava tentar me encaixar porque nunca ia conseguir me encaixar nas expectativas das outras pessoas. Se eu aceito que eu sou diferente, eu consigo aceitar a diferença das outras pessoas, eu consigo utilizar do meu conhecimento, das minhas técnicas, da minha prática e do meu poder enquanto profissional pra criar um espaço pra que as outras pessoas possam se expressar, pra que as outras pessoas possam ser quem elas são e quem sabe, ali no consultório, começar essa pequena transformação. E ela começar a se aceitar na relação comigo: “- Poxa, tem alguém que me aceita do jeito que eu sou. Tem uma pessoa que entende as minhas dores do jeito que elas são, que não tá dizendo que isso aqui é errado, que não tá dizendo que eu sou doente.”. E aos poucos, isso levar para as outras relações, levar para os outros espaços fora do consultório. Eu acho que esse é que é o caminho que a gente tem que pensar, quando a gente vai falar de uma prática psicológica mais inclusiva. Não da forma como a gente entende a inclusão de uma forma de senso comum, que é simplesmente lidar com pessoas com deficiência, mas sim, ter uma prática que possa atender, literalmente, a todas as pessoas porque a gente aceita todas as diversidades. Sejam elas diversidades neurológicas, diversidades físicas, diversidades de gênero, sexualidade, diversidades religiosas, diversidades étnicas, diversidades de língua. A gente tá trabalhando com pessoas, e todas as pessoas tem uma mesma base biológica, tem uma mesma base social, tem uma mesma base humana, a gente vive no mesmo planeta. Porque a gente tem, justamente, essa vontade de ser quem a gente é. O nosso trabalho deve ser encontrar esse espaço, construir esse espaço e a nossa clínica não deve ser limitada apenas ao consultório. Eu acho até que esse trabalho que a gente tá fazendo aqui, fazendo esse podcast, é um trabalho clínico de construção desse espaço, porque eu imagino que outras pessoas autistas ou que nem sabem que são autistas vão estar ouvindo a gente e podem se identificar, e podem reconhecer esse trabalho. Outros profissionais também podem tá entendendo isso. E a gente tá ajudando a construir esse espaço de aceitação e inclusão, mostrando um pouco do nosso relato, mostrando um pouco da nossa experiência e mostrando um pouco de como a nossa realidade social, ela é uma realidade excludente que precisa resolver isso. Quem precisa mudar não é a pessoa autista, quem precisa mudar é a sociedade que exclui. Ser autista não é problema, ser autistas não é transtorno, ser autista não é doença. Ser autista é ser quem você é, o problema tá na sociedade que exclui. E cada vez que a gente diz que a pessoa autista precisa se adaptar, precisa aprender, precisa se modificar por ser autista é tão violento como dizer que a pessoa negra precisa se alterar por ser negro, ou a mulher precisa se alterar por ser mulher, a pessoa homossexual também por ser homossexual. É tão violento quanto. Mas a gente não reconhece essa violência, porque parece que é normal. Afinal de contas, autista é deficiente e deficientes não é tão pessoa assim. E tudo começa com nosso trabalho clínico na Psicologia, porque a gente reforça esse olhar excludente.
Giovanna: o que eu percebi na minha prática clínica ser modificada e isso aparecer bem evidente, foi quando eu finalizei meus estágios clínicos na faculdade e os meus pacientes falaram: “- Eu acho que você foi a primeira pessoa que me ofereceu espaço de acolhimento e que me escutou, porque você não me julgou e você me mostrou o olhar que o problema não era comigo, o problema era com a sociedade, com as outras pessoas que não me aceitavam da forma como eu sou”. Isso reverberou tanto em mim, era essa prática clínica que eu quero continuar, que nós devemos começar a proporcionar, que nós devemos desconstruir toda essa psicologia elitista, colonialista, excludente.
Pablo: capacitista.
Giovanna: capacitista. É pra começar a construir essa psicologia descolonizada, decolonizada, inclusiva. Eu acredito que foi isso que a gente gostaria de ter passado nesse podcast.
[volume da trilha aumenta]
Pablo: acho que esse é o nosso retrato.
Giovanna: é, esse é o nosso retrato [risos].
Pablo: é um pouco da nossa vida, um pouco da nossa prática da nossa área, um pouco das dificuldades que a gente enfrenta. Enfrentou e enfrenta e vai enfrentar ainda.
Giovanna: exatamente.
Pablo: né? Como profissionais, psicólogos, autistas. Lutando contra um sistema que nos exclui. Tentando não só ter voz no meio desse campo, mas dar voz também para outras pessoas como a gente.
[trilha]
[vinheta]
Olga Aureliano: o Ateliê Ambrosina é a ONG de Maceió-Alagoas que está à frente da realização do Retratos Defiças, um projeto financiado pela Universidade Western do Canadá. Atua na produção local junto comigo, Vanessa Malta e Bruna Teixeira, e como pesquisadoras temos as antropólogas Nádia Meinerz e Pamela Block. O roteiro, gravação e edição é de Giovanna Nicolau e Pablo de Assis, cocriadores deste episódio; a finalização e vinheta é de Rodrigo Policarpo, e a transcrição é de Beatriz Simões, com revisão de Bruna Teixeira e tradução para o inglês de Deise Mônica. Nos encontramos na semana que vem.
[vinheta]
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