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Image by Rianne Zuur
Amor Gay no Espectro

#1

episódio

Título: Amor Gay no Espectro

Data de publicação: 20/12/2021

Cocriação: Tiago Abreu e Bruno Fillmann

Cidade/UF: Porto Alegre/RS

Tiago: eu sou o Tiago Abreu.

 

Bruno: e eu sou o Bruno Filmann.

 

Tiago: nós somos autistas e nos conhecemos no Tinder.

 

Bruno: é o Tiago tinha qualquer coisa sobre vagamente mencionando autismo na descrição dele. E daí, eu fiquei interessado e eu perguntei pra ele a respeito.

 

Tiago: quando ele me perguntou se eu era autista, eu pensei: “Eita, mais uma pessoa que vai parar de falar comigo ou vai começar a agir estranho depois de saber que eu tenho uma deficiência.”. Só que ele disse em seguida que ele era autista e a minha biografia deu essa impressão pra ele, e aí eu fiquei: “uau!”.

 

Bruno: aí eu já tive problemas semelhantes antes de não saber se eu falava ou não falava da minha deficiência, porque muitas vezes as pessoas quando falam da tua deficiência acabam te tratando de forma diferente ou não querem lidar com aquilo ou acabam se sentindo intimidadas, eu acho.

 

Tiago: e com a gente foi um pouco diferente. Nós começamos a fazer algumas chamadas de vídeo e a coisa foi fluindo, foi acontecendo e alguns meses depois... oficialmente namorados! Bom, é isso: nós somos um casal de autistas.

 

[vinheta]

 

Olga Aureliano: Amor Gay no Espectro é o episódio de estreia do Retratos Defiças, o canal do projeto Retratos do Brasil com Deficiência realizado por duplas cocriativas de todo o país. Neste episódio, Bruno Fillmann e Tiago Abreu exploram as relações existentes entre a comunidade do autismo e a comunidade gay: as referências culturais, o uso dos aplicativos e os impactos da deficiência. Vamos embarcar com eles.

 

[vinheta]

 

Tiago: eu descobri que estava no espectro do autismo no final da adolescência e eu fui formalmente diagnosticado em 2015, quando eu tinha 19 anos. Já a questão da homossexualidade foi bem antes na verdade, desde que eu era criança, eu já identificava alguma coisa. Na verdade, até o próprio autismo também são duas coisas que caminhavam juntas. Eu sempre me senti diferente, mas eu tive uma criação bem religiosa, então, eu só fui de fato sair do armário da sexualidade muito depois que eu saí do armário do autismo.

 

Bruno: eu recebi o meu diagnóstico em 2019, se não me engano, foi bastante tardio também, mais do que o Tiago, mas eu tive a minha vida inteira uma ideia assim de que eu não pensava exatamente como as outras pessoas e tinha dificuldades e facilidades que não eram comuns.  Quanto a homossexualidade, eu só fui começar a pensar e ter consciência sobre isso durante a pré-adolescência. Eu pessoalmente nunca tive problema ou grande problema de me aceitar, tanto como um homem gay, quanto como um homem autista. Só na esfera da sexualidade que eu tinha bastante receio de me assumir publicamente, mas era mais no sentido de que adotar um rótulo me parecia uma coisa muito final, me vinha um medo de que, “e se eu estiver errado e tiver que voltar atrás anos depois?”. O que é claro, era um medo bobo. E quanto ao autismo, eu não tinha um estigma relacionado ao diagnóstico e muita coisa do diagnóstico só fez muito sentido pra mim, explicou muita coisa. Acho que eu diria que eu nunca vi o autismo como uma coisa que traria uma nova dimensão pra mim, mas sim uma explicação de uma dimensão que já existia, minha.

 

Tiago: pelo fato de ter sido diagnosticado com autismo mais tarde de ter tido uma criação religiosa, eu tive várias fases em relação a relacionamentos. Eu lembro que, por exemplo, até o meu diagnóstico, eu já tinha plena consciência de que eu era gay, mas eu evitava ao máximo isso ou tentava viver como celibatário, porque eu não queria também enganar mulheres, né? Então eu ficava nessa zona cinza. Quando eu fui diagnosticado com autismo, eu tive a oportunidade de me esconder dentro do armário do autismo, porque tem aquele estereótipo do autista como pessoa que não tem interesse em relacionamentos, assexual e aí as pessoas poderiam interpretar: “- ah ele não tem relacionamentos, porque ele é autista”, e isso funcionou pra mim. Até o momento que o meu corpo pediu mais por relacionamentos e coisas do tipo, e eu não consegui evitar. E aí a primeira vez que eu fiquei com um cara, a primeira coisa que passou na minha cabeça foi: “Esse é um caminho sem volta!”. Mas as coisas foram bem difíceis no início, principalmente pelo fato de saber qual era o momento certo de dizer que você é uma pessoa com deficiência ou não e o meio gay é um pouco difícil, convenhamos.

 

Bruno: é eu acho que definitivamente um problema também para autistas e pessoas com deficiência heterossexuais, mas não me surpreenderia nem um pouco que pessoas autistas que buscam relacionamentos homossexuais tenham mais dificuldades em encontrar um parceiro.

 

Tiago: a comunidade gay tem alguns padrões e algumas formas de funcionamento que podem favorecer ou complicar a vida de pessoas. E aí, quando eu falo de facilitar, eu penso muito em comparação com a população heterossexual no sentido de obter sexo. Na sociedade, principalmente machista que a gente tem, existe uma dificuldade bem acentuada entre heterossexuais, no sentido de que há uma disparidade entre o homem tomar iniciativa, a mulher não dar muito espaço... e em relacionamentos heteros a questão do sexo pode ser bem difícil. Na comunidade gay, a questão do sexo pode ser até exagerada, no sentido de que é muito fácil conseguir sexo. Por outro lado, também há alguns desafios em relação àquilo que é mais valorizado ou não dentro da comunidade gay. E aí a gente tá falando sobre padrões corporais, padrões de comportamento. Entre os padrões de comportamento, temos as questões do autismo que vão às vezes complicar esse contexto; e nos padrões corporais, principalmente, a gente tá falando muitas vezes de pessoas que são magras, que têm um certo padrão de cor, que têm certos tamanhos de altura e de membros do corpo. E isso no sentido prático, em alguns contextos, pode ser um tanto quanto excludente, né? Não só para pessoas do espectro do autismo, mas pessoas gays uma forma geral. A comunidade gay também acaba vendendo muito a ideia de ser uma comunidade inclusiva, onde tudo é paz e amor que as pessoas que já são excluídas da sociedade podem se integrar, né? Porque, afinal, estamos todos no mesmo barco. Mas isso não é necessariamente a verdade (risos). Não estamos no mesmo barco, em algumas questões. Então, todos esses pontos acabam convergindo na dificuldade de uma parte da comunidade gay, em aceitar e assimilar bem a deficiência. Afinal, quantas pessoas que talvez vocês já ficaram que são pessoas com deficiência? No meu caso, além do Bruno, eu só uma vez saí com cara com deficiência, um cara que tinha paralisia cerebral e eu só fiquei sabendo disso no encontro em si. Eu nem tinha esse contexto, as fotos no indicavam nada. Então, onde estão as pessoas com deficiência também nos aplicativos? É uma questão bastante complicada.

 

Bruno: é verdade isso, eu acho importante esclarecer aqui - caso não tenha ficado claro - que nós estamos nos referindo, especificamente mais, à comunidade de homens gays porque é nossa rede de experiência. Outras comunidades LGBT têm outros problemas distintos. Esse problema da supremacia da estética é um problema bastante endêmico da comunidade gay. Eu vejo bastante uma discussão sobre uma epidemia de solidão entre homens gays, eu acho que tem tanto um contexto histórico para isso por causa de toda opressão que esse grupo de pessoas sofreu nesses últimos anos, quanto um contexto baseado nas características desse grupo em si que, na minha experiência, não é imediatamente óbvio para pessoas heterossexuais. É um grupo formado, majoritariamente, por homens que são socializados a serem mais competitivos e agressivos e, então, uma comunidade que tem essa predisposição à competição. Além disso, diferente de relacionamentos heterossexuais, quando tem um relacionamento homossexual as duas pessoas estão submetidas ao mesmo padrão de beleza, então acaba correndo quase uma corrida armamentista de aparência. E de um tentando ser mais bonito que o outro, que o valor de uma pessoa é medida pela suas conquistas sexuais e as conquistas sexuais dessa pessoa são dependentes da sua aparência e acaba-se criando muito forte aquela ideia do padrão, né? Do homem ideal. E esse padrão de ideal não pode ser fisicamente atingido, porque grande parte da população. Tu não consegue mudar o teu tom de pele, a tua altura, o fato de ter uma deficiência ou não. Então, isso acaba criando graves problemas de autoestima, de solidão, de depressão e essas coisas afins.

 

Tiago: e sem falar das coisas externas à comunidade gay, que também vão inflando esses problemas, né? Então, da minha experiência, a própria questão da religião, por exemplo, que foi algo que exerceu um peso muito grande sobre mim, até mesmo depois de eu não me considerar mais uma pessoa religiosa. No sentido de pensar que, diante de todos os valores que as pessoas ao meu redor tinham, eu nunca poderia viver uma vida normal e leia-se como normal, ter a tranquilidade de, por exemplo, levar o namorado para casa, ir para algum lugar sem o medo de algum parente né, que seja mais preconceituoso estar ou passar ou vê-lo, enfim, de qualquer forma, as histórias se espalharem. A comunidade do autismo também não, não necessariamente lida muito bem com a questão da sexualidade. Não que não haja muitas pessoas com diversidade sexual, mas existem alguns valores construídos na comunidade do autismo e na história do autismo que estão muito ligados a um apagamento da sexualidade de autistas.

[efeito sonoro como um badalar, marcando o início da trilha Godmode – Underwater Exploration]

 

Tiago: A comunidade do autismo no Brasil começou a se formar especialmente na década de 1980. Já se tinha algumas pesquisas dentro da comunidade científica, principalmente marcadas em entender o que era o autismo, ainda. Mas uma discussão mais social sobre o autismo iniciava os seus primeiros passos, principalmente, em meados de 1983, quando foi fundada a Associação de Amigos do Autista - a AMA, em São Paulo. Esta foi a primeira organização de autismo fundada no Brasil, e ela era organizada por pais que queriam que seus filhos fossem minimamente alcançados pelo saber médico, que na época, era praticamente inexistente. No Brasil naquela época, ainda se imperava muito forte, um saber psicanalítico que jogava a causa do autismo direto nas mães, principalmente, como as culpadas pelo autismo dos seus filhos. E nessa época, o que se entendia por autismo é aquilo que algumas pessoas chamam hoje em dia de autismo severo que é uma faixa do espectro do autismo, principalmente caracterizada por muitas dificuldades na comunicação, e muitas vezes também, na autonomia do dia a dia. E o fato do autismo com muitas aspas – “severo” - ser caracterizado como a cara do autismo por muito tempo, isso impediu que as famílias conseguissem pensar sobre questões de sexualidade, o que o debate era muito engatinhado. Tinham muitas famílias que sequer conseguiam colocar seus filhos na escola, conseguiam um diagnóstico. Então, a discussão sobre sexualidade parecia muito distante. E justamente pelo autismo ser caracterizado como uma deficiência que envolve o domínio da interação social, e autistas muitas vezes podem ter dificuldade em mentir ou mentirem mal ou ter aquela questão que se chama sincericídio, foi-se construindo uma imagem de autistas como seres puros, sem maldade, sem sexualidade, anjos azuis. Essa expressão “anjo azul” é uma expressão muito particular da comunidade do autismo no Brasil, que na verdade ninguém sabe ao certo qual é a origem, de onde isso veio. A gente sabe que o azul para caracterizar o autismo é uma construção que se deu nas últimas décadas, que justamente tem uma associação mais ao universo masculino. Então, “anjo azul” é o autista homem, que não tem maldade, que não tem sexualidade, e isso acaba sendo bastante complicado para todos os autistas que saem dessa norma. Então, as autistas mulheres, artistas, LGBTs, até autistas negros né - porque quando a gente fala sobre autismo, e aí se você vai até do Google e digita “autismo” o que vai aparecer? Vai aparecer um menino, uma criança branca. Então é essa imagem que se tem, não só no Brasil, quanto no exterior acerca do autismo. E aí, como é que fica um autista gay na comunidade do autismo, em que é normalizado falar em anjo azul? Em que isso normalmente não é problematizado? Como é que você vai chegar por exemplo, numa associação, daí que tem toda essa questão da cor azul e etc., e aí você fala que você é uma autista gay que gosta de beijar rapazes? Então realmente é uma questão muito complicada.

 

[trilha]

 

Tiago: é claro que essa questão do anjo azul começou a ser mais questionada na comunidade do autismo com o surgimento de um ativismo autista, que tem o seu início dos últimos 10 anos. O ativismo autista no Brasil é uma realidade muito recente e ele ainda tem um certo ar de formação. Não que... Existem pessoas que já estão há muito tempo, mas eu digo no sentido de que o ativismo autista no Brasil, ele ainda não é mainstream, ele ainda não é a principal corrente de maior visibilidade na comunidade do autismo. A única exceção vão realmente para os autistas que vão falar sobre autismo nas mídias sociais. Então você pode até pensar alguns autistas no Youtube, em páginas no Instagram, Facebook, Twitter que vão realmente ter maior visibilidade. E existe uma parte dos produtores de conteúdo e também dos ativistas autistas que começaram a inserir mais frequentemente nesse debate sobre sexualidade, principalmente nos últimos três, quatro anos.

 

Bruno: é verdade isso. Além da dificuldade nata dos autistas em relações sociais tem também todo um contexto da sociedade, que muitas vezes dificulta ainda mais os autistas a terem relações sociais e sexuais, e relações em geral.

 

Tiago: eu acho que quem está inserido num contexto como nós, de quem usa aplicativos etc., principalmente na comunidade gay, acaba tendo o desafio de alguma hora falar que é uma pessoa com deficiência. Eu lembro que quando a gente começou a conversar, você mesmo disse que algumas pessoas levavam a informação de que você era autista muito mais a sério do que deveriam levar. Então, eu queria saber como é que foram as suas experiências no sentido de falar para alguém que você era autista?

 

Bruno: eu acho que parte disso vem da dificuldade que os autistas têm de sensor social, né? De saber o que que é apropriado dizer, o que não é, quando que é, quando que não é. Pra mim também nunca foi assim, um grande segredo assim. Eu acho que envolvia muito uma forma de preconceito de uma ideia que as pessoas tinham, como se eu estivesse sendo pessoal demais falando aquilo sobre o que eu sou, sobre quem eu não sou, enfim. Pelo menos foi a impressão que eu tive, sabe? Muitas vezes as pessoas agem como se eu tivesse investido nelas uma grande revelação, sabe? Uma grande verdade do universo.

 

Tiago: no meu caso eu também tive essa impressão, só que diferentemente de você, falar que eu era autista por um período era realmente uma grande revelação. No sentido de que, eu queria evitar qualquer tipo de problema, qualquer tipo de risco. E que, além de ser autista, eu tenho interesse pelo autismo como tema, né? De uma forma geral. Então, isso acabaria em algum ponto sendo relevante numa saída, numa ficada, numa relação. Não necessariamente numa ficada, né? Porque aí é mais uma questão de casualidade, mas eu tive algumas respostas diferentes ao fato de eu ser uma pessoa com deficiência que depois me fizeram ficar bastante pensativo, ao longo do tempo. Eu lembro que em 2018, eu comecei a conversar com um cara do Tinder e tava bem legal. Ele era colega meu da universidade do curso de biomedicina, se não me engano. E aí, eu falei para ele que eu estava no espectro do autismo, depois de um tempo da gente conversando, e aí ele me perguntou se eu era agressivo e eu fiquei, “- não, eu não sou agressivo, por que?” Aí ele respondeu: “- Não, porque meu ex-namorado era agressivo.”. E aí foi uma coisa completamente fora de contexto, eu não entendi em que bulhufas fazer isso realmente se encaixava. Mas aconteceu que depois que ele me viu pessoalmente, ele perdeu o interesse. A impressão que eu tenho é que a informação do autismo foi onde começou tudo a decair, sabe? De certa forma. E aí nessa mesma época também eu conheci um cara que ele sabia que eu era autista, porque eu tava começando um podcast de autismo que eu tenho que é o Introvertendo e, nessa época, eu estava no contexto muito defensivo. Qualquer coisa que eu cometia de errado, eu já ficava tenso e pensava “- é o autismo.”. E eu acho que isso também foi tirando a paciência dele num certo período, no final das contas, não deu certo. E ele de um jeito até meio grosseiro, disse que eu me escondia atrás do autismo. E aí, desde então, eu comecei a ficar com muito medo e muito receio de falar que eu era autista ou queria que a informação do autismo tivesse no subtexto. Aí, um tempo depois isso em 2019, eu comecei a ficar com um cara e ele ficou sabendo que eu era autista no nosso primeiro encontro mesmo. Ele tava falando sobre a vida pessoal dele, ele falou coisas bem pessoais sobre ele, sobre a morte do pai e etc. E aí, eu encontrei um contexto de segurança para falar que eu era autista. Ele reagiu super bem, continuou saindo comigo, a gente saiu junto algumas vezes; mas por outro lado, a informação que eu era autista parece que colocou ele numa situação de pisar em ovos, ele não queria ter nenhum tipo de comportamento que fosse lido como opressivo ou capacitista. E isso, evidentemente, começou a podar ele de manifestar aquilo que tinha interesse, seja do ponto de vista da relação, seja de ponto de vista sexual, enfim. As coisas acabaram não indo muito longe e, no fim das contas, eu nunca encontrei a forma perfeita de dizer que eu era autista. Por isso que quando você me perguntou, se eu era autista, eu comecei a ficar com medo, porque a nossa conversa estava muito legal e, definitivamente, eu não queria que fosse mais um histórico errado.

 

Bruno: eu acho que os aplicativos de relacionamento que nós temos hoje em dia são adagas de dois gumes, né? Porque sim, por um lado existe uma democratização do namoro, dos relacionamentos, tu tem muito mais facilidade de acesso, né? As pessoas no interior, pessoas com deficiência, pessoas LGBT tem uma facilidade muito maior agora com os aplicativos de relacionamento. Mas também tem seus lados negativos, né? Todo modelo de negócio desses aplicativos de relacionamento é justamente manter pessoas usando o aplicativo, então vai contra os interesses deles que as pessoas encontrem relacionamentos estáveis. E eles acabam tornando as pessoas em commodities e os aplicativos de relacionamentos são praticamente catálogos de produtos, né? Tu ficar navegando pelo Tinder, não é muito diferente de tu navegar para um catálogo de roupas ou de carros. Então, eles funcionam exatamente com essa ideia de que existe alguém melhor no próximo clique, no próximo clique. E a gente sempre procurando uma coisa melhor, uma coisa melhor, sabe? E eu acho que isso pode ter efeitos bastante danosos para uma pessoa que não se enquadre exatamente no padrão, né, nos perfis do que um artigo de luxo nesses aplicativos.

 

Tiago: sim, sim eu concordo contigo. E eu adicionaria também que nesse contexto dos aplicativos, as características do autismo vão se relacionando de forma que nos coloca em desvantagem em algumas interações. Primeiro, que a gente tá falando sobre aplicativos em que, todas as formas de encontro, se dão por formas diretas né, de conversação e etc. Isso já deixa muitas vezes bem claro as nossas dificuldades de habilidades sociais e de entender se a pessoa tá interessada ou não. E note: é muito mais fácil do que simplesmente a forma como as pessoas se conheciam antes, sei lá, indo em bares ou sendo apresentadas, né? Umas às outras. Porque nos aplicativos você tem um match, mas muitas vezes alguns autistas não conseguem sequer um match, seja porque não sabem vender o próprio peixe - aqui usando uma expressão bem figurada – ou porque não tem uma biografia interessante, porque não escolhe boas fotos, porque tem assuntos muito restritos de interesse e aí não consegue conversar fora desse escopo. E a gente vai criando uma situação muito ruidosa e muito negativa né, muito agressiva para muitas pessoas dentro do espectro. Eu levei muito tempo para aprender a usar essas coisas.

 

Bruno: tu levantou um ponto que eu acho bastante positivo nesses métodos modernos de namorar. No sentido da comunidade do autismo, que é uma forma diferente de buscar assim pretendentes, né? E é uma forma muito mais explícita, na minha opinião, que ajuda bastante. Então, quando tu dá um match, quando a pessoa te responde, tem certeza que ela tem uma quantidade mínima de interesse em ti, né? Porque eu sempre tive bastante dificuldade de saber quando alguém tinha interesse em mim. Eu sempre tinha muito medo de tipo, violar a pessoa, sabe? Tipo, de entender errado alguma coisa, e virar uma situação constrangedora para os dois. Então, eu gosto bastante desse aspecto, em que existe quase um contrato assim de relacionamento, né?

 

Tiago: sim. E eu acho que desde que você entenda também a mecânica desses aplicativos; e também aqui, citando os próprios da comunidade gay como Hornet, Grindr e etc., que muitas vezes são mais voltados ao sexo, você consegue criar assuntos em conversas que também pode ser uma dificuldade bem grande para autistas, a partir daquilo que está dentro da biografia da pessoa e etc. Quando você tá no espaço físico, muitas vezes você não sabe muito bem com o que você vai puxar assunto, mas ali, você consegue ter acesso a outras redes sociais da pessoa e conseguir de certa forma puxar uma conversa. Mas mesmo puxando a conversa, aí vem outras questões do autismo que na comunidade gay, assim como um relacionamento em geral, não há muita tolerância, que são os interesses restritos. Eu às vezes gosto de ficar muito tempo conversando sobre assuntos específicos e eu não consigo perceber muito facilmente quando a pessoa está desinteressada. No meu primeiro encontro com o Bruno, que a gente teve na verdade pela internet, a gente fez uma chamada de vídeo. A gente ficou conversando durante quatro horas seguidas sobre vários assuntos e eram assuntos que eu acho que talvez para um encontro comum, as pessoas estranhariam, mas que talvez para gente foi super normal. A gente conversou sobre o próprio autismo, a gente conversou sobre política, sobre sociedade, alguns assuntos até bastante profundos e foi naquele momento também que comecei a perceber que pelo menos no caso do Bruno - porque eu nunca tinha estado em um contexto romântico com autista – de que havia muito mais tolerância ao erro, do que em outros contextos. Eu estava me sentindo mais permitido a errar sem ser punido, eu tava bastante à vontade.

 

Bruno: definitivamente eu também me senti mais confiante com Tiago. Teve muito menos essa pressão de projetar uma imagem normal, por assim dizer.

 

Tiago: uma parte da comunidade autista, de uma forma geral, tenta bastante incorporar símbolos até ligados à comunidade LGBT, como o arco-íris, por exemplo, né? Que é muito caracterizado no símbolo da neurodiversidade. Mas o oposto não acontece muito. Não há muitas referências ao autismo no contexto gay ou não heterossexual. Nas produções culturais, de uma forma geral, se a gente pegar os principais filmes, séries sobre autismo, geralmente os personagens são héteros. E pelo menos no meu caso, não tinha muito conhecimento sobre o autismo por parte das pessoas com quem eu conheci, me relacionei. A comunidade gay, definitivamente, não tem muito conhecimento e muitas referências do autismo.

 

Bruno: representatividade LGBT como um todo na mídia é um fenômeno bastante recente. Eu e o Tiago, a gente já tá ficando velhinho, né? Então, já é de outra época. E tipo, é de uns 10 anos pra cá, tem muito mais representação de todas as formas LGBT na mídia. Sei lá, acho que é Will & Grace que começou nos anos 90, né? Tipo, antes era opressão bastante pesada contra qualquer gay, trans, enfim. Então, eu não sei se é um pouco injusto também cobrar representatividade de todos os grupos, sabe? Num contexto de homossexualidade ou de trans ou de enfim. Eu acho que a interseccionalidade é importante, mas não sei se é tão certo a gente cobrar assim, sabe, que precisa ter uma representatividade de tudo quanto é grupo, em todos os outros grupos, sabe, pouco possível. Mas, recentemente teve Special que é uma série que aborda justamente um homem com deficiência e na série ele tem paralisia cerebral. A experiência dele na comunidade gay, né, mas é claro que é só experiência de mais um homem branco, gay, que tem em um monte de filmes e séries sobre isso, né? Então eu acho que sim, cada vez mais a gente vai abrindo mais portas para novas experiências. Então, eu sou bastante otimista nesse aspecto. Eu acho que a gente vai cada vez mais ver mais representatividade na mídia;

 

Tiago: e no caso de Special ainda teve um personagem autista gay também dentro da história. Foi uma série até bem interessante nesse sentido que primeiro explorou, né, um homem gay com deficiência e ao mesmo tempo o estranhamento que ele teve por estar desconectado da comunidade de pessoas com deficiência e como foi ele se aproximar nesse sentido. Então, apesar da primeira temporada ter sido um pouco mais supérflua, a segunda temporada entra um pouco com esses debates. Isso me fez pensar muito também em relação a minha própria relação com o circuito do autismo e com as questões da minha sexualidade. Que eram duas caixinhas que eu tentava manter ao máximo distanciadas uma da outra sabe? Então eu me vi muito daquele personagem Sid, que eram coisas que quando elas se juntavam não dava muito certo. E, enfim, eu não sou só autista, eu não sou só gay, essas coisas fazem parte da minha vida e elas estão entrelaçadas de forma que, em muitos contextos, eu não sei separar uma coisa da outra, obviamente. E eu acho que a comunidade do autismo tem um largo passo para lidar com isso, não só lá fora como aqui também, mas me parece um pouco esperançoso no sentido de que, aos poucos, a gente está começando a incorporar o entendimento de que autistas tem sexualidade, autistas tem interesse em relacionamentos sexuais, que existe uma realidade muito dura de autistas que enquanto pessoas com deficiência, não conseguem ter relações, mas querem. Existe agora uma discussão que tá começando ocorrer de educação sexual no contexto do autismo, mas também uma outra discussão que acompanha um pouco dos debates relacionados à sexualidade e orientação sexual na comunidade do autismo. A gente tem uma emergência nos últimos anos de uma parcela da comunidade autista que é trans, que tem chamado bastante atenção, sendo bastante expressiva, inclusive aqui no Brasil e especialmente na internet. E eu acho que esses próximos 10 anos dessa década vão ser bem marcados nesse sentido.

 

[trilha Godmode – In 3]

 

Tiago: existe uma questão cultural que a gente não pode ignorar, porque o autismo se manifesta obviamente em pessoas e esse fenômeno só existe porque existem pessoas autistas e essas pessoas autistas estão em todos os lugares do mundo. E cada país do mundo tem as suas características particulares, suas questões políticas, suas caracterizações regionais e o Brasil não é um país diferente. A gente vive num país continental que tem muito entre seus valores, a ideia de pessoas extremamente sociáveis, extremamente alegres, receptivas e muitas vezes os valores intrincados ao autismo não necessariamente batem com os valores do nosso país. Eu, particularmente, não acho que seja necessariamente fácil ser autista no Brasil, mas também não acho que seja muito mais difícil que na maioria dos países. O Brasil ainda me parece um país relativamente autism-friendly, sabe? Porque a nossa legislação avançou bastante dos últimos anos, por mais que alguns temas a gente ainda tem um olhar paternalista sobre o autismo ou sobre como os autistas são ou deveriam ser. Não há tanta negação à ideia de que nós somos pessoas com deficiência e que nós temos particularidades que precisam ser assimiladas e respeitadas. Eu sou um autista que já esteve nas cinco regiões do Brasil, os meus pais são baianos, eu nasci em São Paulo, fui alfabetizado em Minas, morei em Goiás e agora eu moro aqui, no Rio Grande do Sul, onde eu conheci o Bruno. E eu também já estive na região Norte. Eu, particularmente, acho que há muito ainda pra gente entender e aprender sobre o autismo e os autistas brasileiros, em relação a nossa própria cultura brasileira. O Bruno, obviamente é brasileiro, mas ele também já esteve no exterior que é uma experiência que eu não tive. E aí, eu até queria saber de você: como é que você enxerga essa questão de ser autista no Brasil?

 

Bruno: então, a meu ver, o autismo ele é um diagnóstico científico, mas ao mesmo tempo, ele tem uma base social muito grande, né? Eu acho que muito vem desse aspecto cultural. Uma coisa que eu reparo é que toda ou  quase toda pesquisa relacionada ao autismo, ainda vem de países anglófonos, né? Então, eu não sei... eu teria interesse de saber se essas pesquisas feitas por psicólogos e psiquiatras e afins, se se aplicariam também em um país como o Brasil, o Egito, como sei lá, China, Japão que são sociedades completamente diferente desses países anglófonos, né, que têm valores diferentes, que têm culturas diferentes.

 

Tiago: tanto é que nos estudos críticos do autismo vão ter alguns autores que vão apontar que existe uma aliteração sobre a imagem de autistas que não vivem nos Estados Unidos, no Reino Unido ou nesses países mais centralizados. Então, brasileiros, indianos, até italianos seriam os outros, né, nós seríamos os outros. Então, existe sim esse apagamento de certa forma das nossas particularidades em relação aos outros autistas.

 

Bruno: no tempo que eu morei fora do Brasil, não tive contato até onde eu sei com outros autistas ou com outras pessoas com deficiência. Eu não poderia nem dar, assim, uma alegoria de como que é a experiência de vida dessas pessoas lá. Claro que eu posso dar da minha, né? Mas eu não tive contato com outras pessoas autistas, até onde eu sei e eu não era também diagnosticado na época. Então, eu posso só dizer relatos assim da minha memória, né, que eu não sei não, eu não considero assim a memória 100%, acho que é muito moldada pelo nosso presente mesmo, das informações que a gente tem do passado. Mas eu, sinceramente, não notei grandes diferenças, assim, talvez pelo mundo ser globalizado, digital, né? Eu ficava muito tempo em casa no computador, enfim. Pelo meu estilo de vida em si. Mas eu acharia até desonesto eu falar sobre a experiência das pessoas que moram, no caso, na Alemanha e vivem com deficiência e as dificuldades que as pessoas encontram no dia a dia. E acho que a gente tem que tentar se desapegar dessa ideia muito forte de países que são desenvolvidos, países que são subdesenvolvidos, países que são não desenvolvidos, que são sei lá. Economia, PIB, não é um demonstrador de qualidade de vida absoluto para todas as pessoas do país. Então, eu acho que a gente tem muito forte a ideia dos países bonzinhos, né, dos países culturalmente evoluídos:  Alemanha, Estados Unidos, França... E daí, a gente compara com o país que a gente considera, assim, menos desenvolvidos como sei lá, Vietnã, Brasil e Índia. E nós somos rápidos em presumir que qualquer coisa tem que ser melhor nesses países do que os outros, e não é verdade. A França, por exemplo, tem diversos problemas com tratamento das pessoas autistas, enquanto que aqui no Brasil, eu diria que nós atingimos diversos avanços. Então, eu sou bastante otimista com relação ao tratamento que os autistas recebem no Brasil. Acho que nós já conquistamos bastante coisas, já foi, já teve tantos avanços, muitas leis são passadas, tipo, o comportamento da população em geral. Eu só acho que nós devemos continuar lutando, que nós não devemos tomar esse otimismo e levar um otimismo preguiçoso. Nós devemos continuar sempre lutando para que as coisas fiquem melhor.

 

[trilha finalizando]

 

Tiago: e para finalizar não menos importante, a gente vai terminar esse episódio dando dicas a autistas ou outras pessoas com deficiência que sejam gays sobre a vida e o universo (risos). Pega o caderninho e anota.

 

Bruno: bom o meu primeiro conselho seria: não se preocupar muito com aspirações românticas. É possível se viver uma vida totalmente plena, sem necessariamente ter o seu par perfeito. Um outro conselho seria relacionado ao que eu falei agora, que é não procurar um par perfeito, ter expectativas realistas, não precisa procurar o príncipe perfeito, a princesa perfeita, sabe? Se tu tiver uma ideia muito fixa do que tu procura no parceiro, tu vai rejeitar muita gente que tu poderia ter uma vida feliz com. O  último conselho que eu daria seria procurar na internet, falar com amigos, com família, com o terapeuta, com quem tiver próximo de ti: perguntar se essa pessoa tem alguma dica para que possa facilitar o contato social, em criar laços que possam se desenvolver em um relacionamento. Pode procurar, por exemplo, vídeos de como criar um perfil no aplicativo de relacionamento, que fotos que usar, o que colocar na descrição. São coisas que pessoas neurotípicas já tem dificuldades, e que para nós que somos neurodivergentes, pode ser ainda mais difícil. Então essas seriam as minhas dicas.

 

Tiago: e eu queria dar uma dica, mais no âmbito geral. Que se você é homossexual e você não tem essas redes de suporte terapêutico ou familiar que o Bruno citou é muito importante você ter pessoas na sua vida social que possam te apoiar nesse sentido. Então, às vezes, antes de você correr atrás de outras pessoas, amorosamente, talvez seja importante construir amizades, construir amigos - nem que seja com outras pessoas que também são autistas, que vão ter mais tolerância. Nesse sentido, e se você tiver nesse caminho de conhecer a comunidade gay e etc., e ainda talvez estiver muito fixo na ideia de relacionamento, se desprende um pouco disso. Vá transar bastante, sabe? Vá adquirir repertório sexual, que isso é importante. Então é isso, galerinha!

 

 

[vinheta]

 

Olga Aureliano:  este canal é realizado pela ONG Ateliê Ambrosina de Maceió-Alagoas, e capitaneado pela Universidade Western do Canadá, comigo Olga Aureliano na mediação, eu sou uma mulher surda-oralizada e monocular, e que junto com Vanessa Malta, minha parceira de equipe, defiça visual e diabética tipo I, fazemos a produção local. A consultoria técnica é de Bruna Teixeira, que coordena o projeto ao lado das antropólogas Nádia Meinerz e Pamela Block - as três, temporariamente não defiças. O roteiro, gravação e edição é de Tiago Abreu e Bruno Filmann, cocriadores do episódio; a finalização e vinheta é de Rodrigo Policarpo, e a transcrição é minha, com revisão de Bruna Teixeira e tradução para o inglês de Deise Mônica. Sigam “Retratos Defiças” no Spotify e no Instagram para ficarem sempre atualizadas das cocriações que vem acontecendo pelo Brasil. Até semana que vem.

 

[vinheta]

Card cinza claro, quadrado, do podcast Retratos do Brasil com Deficiência. No centro de um triângulo em diferentes tons de lilás, a cabeça branca da medusa, de perfil esquerdo. O triângulo tem pontas arredondadas e está na horizontal, voltado para a direita. A medusa é uma figura feminina, da mitologia grega, com serpentes no lugar do cabelo. O rosto dela é branco e as serpentes são vazadas, com contorno branco, fino e parecem se mover em todas as direções. Na parte inferior, o nome do podcast. A frase Com deficiência está em negrito e Podcast, em negrito, maiúsculo.
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